Em meio a tantas outras, naquele navio negreiro -
prenúncio de cativeiro - vindo de Angola, estava uma menina: Catarina!
Precocemente arrancada de suas raízes e de seu solo natal, era levada, pelas águas e pela força, a um destino ao mesmo tempo desconhecido e temível. Aquela menina, afastada de seus antepassados, iria cumprir uma longa jornada que a traria, por fim, ao nosso convívio.
E foi ali, sentada num toco, que Vovó Catarina,
segurando sua bengala e acariciando um rosário, me contou sua história.
Dos tempos de menina quase nada restou, ao menos nada que quisesse contar-me. Sua narrativa já a encontra adulta, cativa numa fazenda, numa terra chamada Brasil.
Dos tempos de menina quase nada restou, ao menos nada que quisesse contar-me. Sua narrativa já a encontra adulta, cativa numa fazenda, numa terra chamada Brasil.
Espremida entre outras negras, numa senzala,
Catarina tem por obrigação trazer ao mundo outras almas, lucro para seu senhor.
Suas mãos de parteira habilidosa aparavam aquelas criaturas que nasciam sob a
insígnia da escravidão. Escravidão de almas, de direitos, de raízes, de querer,
de tudo! Marcados todos, com o sinal do dono, marcados todos para apenas
sobreviver. Cada criança nascida enchia seu coração de dor pelo destino que
lhes estava reservado.
Seu compromisso perante seu senhor não era apenas
trazer ao mundo aqueles pequenos infelizes, mas sim “peças” fortes e capazes
para o trabalho.
Se o destino deixava que lhe escapasse algum, era
severamente punida pelo prejuízo causado. Por isso, pagava com dor, corpo
castigado, preso ao tronco, cada alma que Zambi levava.
Cada negra que paria, reforçava nela a decisão de
jamais dar, à escravidão, filhos seus. As ervas que conhecia a ajudavam nesse
propósito, tornando-a estéril. Deixou-se, também, “enfeiar”, na tentativa de
não servir aos propósitos reprodutivos de seu senhor.
Ficou feia por fora, mas conservou a beleza
interior que já havia nascido com ela, a força de seus ancestrais e a
profundidade de suas raízes, embora precocemente arrancadas, ainda germinavam
nela um desejo ardente por liberdade, senão para si, para os de sua cor.
Um dia, a natureza trouxe à casa grande a dor de
um parto difícil. Mesmo num leito confortável, entre lençóis limpos, o
sofrimento da senhora e a angústia de seu senhor eram iguais às de qualquer
negro e acabaram por trazer, àquele quarto, a experiência de Catarina.
Chamada às pressas, como último recurso, fez
aquilo que ninguém tivera a coragem de fazer. Suas mãos negras e seguras
penetram as entranhas daquela moça branca e colocaram o bebê na posição
adequada para nascer.
Todo o peso da responsabilidade transformara-se
em alívio e alegria. Jamais quis perder alma alguma e daquela, em especial,
dependia sua vida. A negra, acostumada aos açoites era, agora, presenteada com
gratidão. Ao trazer ao mundo o sinhozinho, cai nas graças dos senhores,
recebendo o privilégio de não mais ser presa ao tronco.
Os anos passam, o sinhozinho cresce e Catarina
envelhece. A força que os uniu, no dia do nascimento, faz dele seu protetor,
presenteando-a com uma casa, fora da senzala. Ali, Catarina experimenta a única
sensação de liberdade que conhece: a solidão. O silêncio e o recolhimento só
são quebrados pelos gritos: “Catarina, corre!”.
A velha senhora avança pelos pastos, correndo e
orando, pois sabe que tem negra parindo. Sua vida é levada assim, com suas mãos
trazendo ao mundo outras vidas. A mulher que nunca foi mãe é agora avó de
muitos, por isso passa a ser chamada de Vovó Catarina.
A menina negra, contrabandeada de sua terra natal
pela ganância, arrancada de suas raízes pela cor da sua pele, vendida como
mercadoria, açoitada por feitores, cumpre o seu destino de parteira. Traz ao
mundo, dentro da senzala imunda, dezenas de crianças de sua cor, para
compartilhar seu próprio sofrimento, o sofrimento reservado àqueles que não
possuem direito, nem ao menos ao próprio corpo.
Um único nascimento branco dá a ela o direito
irrecusável de viver longe do tronco. Que cativeiro é esse que separa as
pessoas pela cor da pele?
Tantas almas brancas maculadas de sangue. Tanta
pele branca tingida com o negro da escravidão. Tantas vidas presas ao fardo de
ter que pagar com reencarnações, cada elo da corrente que prendeu um ser humano
ao seu semelhante.
Vovó Catarina, do alto de sua sabedoria, diz
saber que a escravidão, tanto quanto cruel, não foi inútil.
Serviu para resgatar os erros cometidos por seu
povo, quando ainda encarnados em terras africanas. “A justiça de Deus não
comete enganos.”
Cada negro aprisionado estava, também,
acorrentado aos seus próprios erros, resgatando-os, um a um, com dor,
humilhação e sangue.
Diz ela: “Não há povo mais sofrido, até hoje, do
que o que tem a mesma cor que a minha. Cada preto e preta, que hoje está
trabalhando nessa casa, tem seus próprios pecados para pagar, e um dia, se
assim for preciso, voltarão reencarnados para quitar suas dívidas”.
Vovó Catarina exibe até hoje, em suas mãos, as
marcas dos ferros que a prenderam ao tronco. Ao permitir que eu as visse – suas
mãos e suas cicatrizes -, abriu meu coração e meus ouvidos para os detalhes de
uma história que ainda não haviam sido contados.
Apenas uma vez vi uma névoa de tristeza embaçar
seus olhos, que possuem uma alegria quase infantil. Ao se referir ao resgate
que seu povo teve que suportar com cativeiro, imaginei, porque apenas posso
imaginar, o que se passou naquelas planícies africanas, banhadas pelo oceano
Atlântico; quando ainda se falava apenas o Banto, com todos os seus dialetos;
bem antes de se tornar colônia portuguesa.
Se um dia, essa história for contada, espero
estar lá para ouvir.
Por enquanto, nos resta respeitar a dignidade com
que estas almas suportaram sua dor.
Obrigada pela visita e Volte sempre!!
Axé sempre em seus Caminhos !!!
Abraços!!
Nenhum comentário:
Postar um comentário